Agus das minhocas

Agus das minhocas

No segundo semestre da minha licenciatura em Bioquimica, tivemos uma professora de microbiologia que além de ser cientista, era filósofa de profissão, se não me lembro mal, tinha-se graduado em Alemanha há anos, pelo que tinha um imenso amor pela microbiologia e pela arte da escrita. No final do semestre, realizamos uma tafera lúdica com fins recreativos, o objetivo era escrever uma história a partir de um desenho de uma espécie animal; no nosso caso o animal era uma minhoca. Eramos pelo menos uns quatro ou cinco grupos na nossa turma, dos quais apenas dois entregaram a tarefa, eu formei parte de um desses grupos. Um dia antes da entrega da tarefa, tomei a liberdade de escrever um conto um pouco mais complexo daquilo que era esperado; no final acabei por criar personagens nativos da Indonésia, e na altura lembro-me que a professora gostou muito, até fomos convidados ao Centro de Biologia Marinha da Madeira, uma visita que recordo com carinho. É por isso que agora decido publicar a relato aqui, só para não perdé-lo com o tempo e deixar que o pó eletrónico se acumule. Devo aclarar que o texto principal foi redigido por mim, mas foi ligeramente alterado pelos meus colegas do grupo para dar lustre à linguagem, obrigado amigos, se alguma vez lerem isto, vocês sabem quem são. O texto não foi alterado de nenhuma maneira neste artigo, pelo que se encontra exatamente como estava quando foi entregue no ano passado (exceto pelas imagens), o título no entanto, foi criado hoje.

Os vulcões de lama são estruturas argilosas e cónicas que se encontram em países como os Estados Unidos, Trinidad e Tobago, China e em algumas Ilhas no Oceano Índico. São estruturas formadas por rochas e magma em profundidade que sofrem alterações hidrotermais em consequência de soluções muito ácidas em estado supercrítico que contribuem para o aquecimento da água que é forçada a sair por condutos devido às fortes pressões de gases, principalmente o metano (CH4). São, portanto, formadas pela ejeção de gases, líquidos e lama, não sendo consideradas estruturas magmáticas. Podem ter tamanhos variados, que vão desde alguns centímetros (cm) até os 700 metros (m) de altura e diâmetros até 10 km. O maior vulcão de lama do mundo é o Lusi, localizado na minha Ilha natal Java, na Indonésia, que em 2006 entrou em erupção expelindo 180000 metros cúbicos (m3 ) de lama, causando danos consideráveis em infraestruturas (ex: escolas, casas, hospitais) cruciais para o funcionamento da ilha. 

Vulcão de lama.

Na altura, eu e um antigo colega chamado Rudi, íamos assistir a uma conferência sobre novas espécies de aves avistadas no país, organizada pela Faculdade de Biologia da Universidade Gadjah Mada. A universidade encontra-se a aproximadamente 300 km de Surabaya, a capital da Ilha de Java. Rudi e eu estávamos na parte mais ao sul da cidade, muito perto do vulcão, pelo que vivemos a experiência em primeiro plano. Rudi era um jovem muito inteligente e entusiasta da biodiversidade, sempre pedia-me para o acompanhar às conferências da sua faculdade pelo que costumava visitar Surabaya frequentemente. Indonésia é um dos países com maior biodiversidade do mundo (o segundo, de facto) e é extremamente variado em aves, embora nem tanto como Colômbia ou Brasil. Costumávamos ver naquelas excursões muitíssimas aves, tanto assim que por vezes íamos os dois de maneira imprudente a zonas densas de florestas só para ver pássaros (ou qualquer outro animal fora do normal). Contudo, esta paixão por aves não era partilhada tão intensamente por mim. Em particular, Rudi tinha uma paixão pela Águia-Falcão Javaniana, a qual víamos imenso nas nossas aventuras, e curiosamente é atualmente a ave nacional da Indonésia. Ele insistia na sua ideia de querer salvar a espécie apesar de, na altura, não estar em perigo de extinção. Porém, segundo ele esta espécies encontrava-se ameaçada, devido a fatores tais como a desflorestação e as erupções vulcânicas, o que acabou por se confirmar em 2012. “Agus, eu irei estudar e ser inteligente, pois quero crescer para ver estes animais viverem por muitos anos”- confidenciou-me ele uma vez. Eu concordava com ele, a Àguia-Falcão era realmente bela, sempre fomos muito próximos à natureza por sermos de famílias ligadas à agricultura. Este fato permitiu-nos adquirir imensos conhecimentos ao longo da nossa infância e permitiu-nos crescer sabendo respeitar a natureza.. Este conhecimento e respeito pelo ambiente foram as razões que levaram ao Rudi estudar Biologia, enquanto que eu decidi cursar Estudos Ambientais na Universidade de Surabaya. 

Java (esquerda) e Surabaya (direita), Indonésia.

Regressando a maio de 2006, aconteceu a catástrofe natural, onde se viu edifícios a cair, carros a ser arrastados por fortes correntes de água e lama, além de um cheiro desagradável provavelmente resultado da libertação de gases do interior da terra. Rudi e eu estávamos no meu apartamento, localizado relativamente perto do local da catástrofe, a falar sobre o exame final do semestre que tinha realizado, enquanto bebíamos uma garrafa de Bintang, uma cerveja local de Surabaya que embora dispendiosa era muito saborosa. Um pouco mais tarde, as fortes correntes encheram a superfície do Sul de Surabaya de lama e pedaços de lixo, tentar andar por aquelas ruas era o equivalente a nadar em areias movediças. As autoridades ajudaram auxiliar a maioria das pessoas atingidas pela emissão, tarefa que resultou ser muito difícil porque foram aproximadamente 50.000 os afetados, ou pelo menos esse foi o número oficial de vítimas reportadas uma semana depois no telejornal. Era tanta a desesperação pela sobrevivência que muitas outras pessoas além dos bombeiros e as forças armadas contribuíram para evacuar as zonas próximas da erupção. Assim sendo, Rudi e eu decidimos ir como voluntários para ajudar na evacuação, foi quando no meio de tantos objetos e fragmentos avistei um pequeno animal que nunca na minha vida tinha visto. Era uma espécie de ténia com um estranho corpo que se movimentava lentamente, cujo tamanho era do tamanho do meu dedo indicador e a cabeça estava enervada com uns excêntricos filamentos cuja função não conseguia entender. O corpo médio possuía um pescoço bochechudo e grumoso de uma cor ligeiramente rosa e um peito inferior que lembrava a uma fração de intestino devido aos padrões arredondados que mostrava e cuja cor era um intermédio entre um azul-esverdeado e um roxo ligeiramente oleoso. A cauda (isto é, supondo que era a cauda) era branca com um padrão de estilo quase “tribal” que considerei o mais chamativo deste animal fora do comum, era quase como se esta minhoca em particular tivesse ido a um estúdio de tatuagens, coisa improvável, porque os “tattoos” são considerados haraam na Indonésia. No final, e devido à delicada situação em que nos encontrávamos, decidimos continuar com o nosso voluntário labor, de modo que só me conseguiria lembrar daquela ocorrência única só até o final do dia. Não encontrei nenhum tipo de informação na internet pelo que supus que era uma espécie ainda não documentada. 

A estranha minhoca.

Nunca mais voltaria a ver uma coisa parecida até mais tarde, porém fiquei sempre com a lembrança. Em julho de 2021, ocorreu uma erupção vulcânica de outro vulcão de lama no Mar Cáspio, numa pequena Ilha ao sul de Baku em Azerbaijão. Esta erupção estava relacionada com emissões de magma que eram bastante raras em vulcões de lama pelo que era de preocupação ambiental o impacto que iria ter em outras espécies marinhas que se encontravam nas proximidades. Eu, já com 35 anos e com muita experiência na área das ciências ambientais, fui com um grupo de expertos dos serviços de emergência de Azerbaijão até a zona do evento para investigar possíveis contaminações de petróleo e gás. Devido à incerteza, decidimos ficar a uma distância segura do vulcão e analisarmos as amostras de água a procura de fragmentos poluentes. Mais tarde, o grupo de mergulhadores voltou ao barco com uma variedade de amostras sólidas, uma das quais reconheci imediatamente: aquele pequeno animal que tinha avistado em 2006 estava agora nas minhas mãos. Nesta oportunidade, este espécime estava contido numa garrafa de amostragem que um dos mergulhadores convenientemente tinha e demonstrava claros sinais de vida pela forma em que violentamente se mexia, devido ao stress de estar fechado. No momento, associei-o graciosamente a algum criminal tatuado e impetuoso que havia visto num filme. Mais tarde e após numerosas investigações descobriríamos que este pequeno animal era efetivamente uma minhoca, mais especificamente da classe dos poliquetas que são uma série de espécies de anelídeos típicos de ambientes marinhos de águas doces e salgadas. Os espécimenes encontrados demonstraram ser de vida livre e sedentários, grande parte destes indivíduos eram altamente iridescentes e muito coloridos. Contudo, o que inicialmente eu deduzi ser a cauda afinal era a boca (que se conhece como prostómio nos anelídeos), pelo que os longos filamentos eram de facto a parte posterior do corpo, o pigídio. Este tipo de anelídeos ainda não foram observados em tubos, como é comum neste tipo de organismos, pelo que ainda são necessárias mais observações para esclarecer os seus hábitos de vida e, consequentemente, inseri-los numa família. No entanto, foi observado que a sua estrutura filamentosa parece ser usada como mecanismo de fixação às rochas nos fundos oceânicos adjacentes a vulcões submarinos e é provável que isto esteja relacionado com o seu mecanismo de alimentação. Não se sabe se estes organismos são carniceiros que aproveitam os restos de outros animais próximos dos locais vulcânicos, herbívoros, filtradores ou então parasitas de alguma outra espécie nas rochas às que se fixam. As emissões bruscas de materiais com origem nos vulcões de lama podem ter promovido a ascensão destes animais até a superfície, a rara ocorrência daquele primeiro individuo em 2006 foi única desde que não foram reportados mais avistamentos do mesmo animal em Surabaya. Atualmente, tem-se verificado que as forças de fixação às rochas destas minhocas variam de individuo para individuo de maneira que os menos fortes serão arrastados face a erupções mais intensas o que poderia explicar o porquê daquele avistamento em Surabaya ser tão excecional. 

Mar Cáspio.

Há que salientar, que fomos os primeiros investigadores a documentar à nossa pequena amiga, pelo que tivemos o direito de atribuir um nome. Numa conversa com os restantes membros da equipa, mencionei ter visto esta mesma espécie anos atrás. Os colegas deixaram-me escolher o nome, pelo que decidi colocar-lhe o meu, Riftia Agus. Esta descoberta foi tópico de investigação de vários artigos em revistas científicas internacionais. Rudi, por sua vez em 2021 já tinha uma grande trajetória no descobrimento de numerosas espécies, entrou em contato comigo e congratulou-me pelo meu debute no mundo da Taxonomia. Além disso, tentou convencer-me a voltar à Indonésia para estudar novas espécies de aves avistadas na Ilha de Celebes. Tudo parecia regressar ao sítio onde começou, no mundo real eramos um par de investigadores num dia normal de trabalho, mas para mim, eramos os mesmos miúdos de oito e nove anos entusiastas pela natureza, nas densas florestas de Indonésia à procura de novas aventuras.

Ilha Celebes, Indonésia.

Escrito em Funchal, dia 24 de junho de 2022. Publicado em Lisboa, 31 de outubro de 2023.

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